domingo, 24 de fevereiro de 2013

Sessão 19 - A flor e o asfalto

Histórias que eu conto sobre a dor para não sentir a minha.

Cresceu solitária... Da mesma forma que crescem as flores em asfaltos. A única coisa que fazia com que ela se sentisse viva era a dor. Enquanto doesse, ela saberia que ainda tinha algo para doer. Ouvia os xingamentos da mãe, ouvia os gritos ébrios do pai, ouvia as palavras maldosas da irmã, mas continuava ali. Em seu canto, sozinha, ela soluçava "eu posso... eu posso...", mas ela não sabia exatamente o que podia. Mas ao ouvir aquelas palavras poderia fingir que havia esperança. Acreditava que em um pequeno pedacinho da dor havia esperança. E um sonho. E se tivesse um único sonho e se dedicasse a ele, então, ela poderia. Criava histórias na cabeça, enquanto ouvia a dor da mãe e a violência de seu pai. Nas histórias ela era tudo que era lindo, ela era forte, saudável e recebia um beijo antes de dormir de seu papai e de sua mamãe. Não um beijo que a repugnava como o de costume, mas um beijo doce, um beijo em que existisse amor. Antes de dormir, sussurrava "eu posso... eu posso...". E, no fundo, sabia que não podia. Olhava para seu corpo magrinho de menina que era obrigada a se fingir de mulher, olhava suas delicadas mãozinhas que não poderiam impedir as grandes mãos do pai quando chegasse a vez de ela receber a violência e gritar de dor. Observava a cortina que separava o local em que ela dormia com a irmã. Quando ele abrisse a cortina, fingiria estar dormindo, quem sabe assim pudesse evitar... Mas não evitaria.

"eu posso (soluço) eu posso (soluço) eu posso..."

Jamais poderia vencer. Ao final, abraçou seu corpinho tão pequeno e encarou a parede até o sol nascer. Se fugisse, morreria de fome, se ficasse, morreria pela fome que seu pai tinha pela sua inocência. E se todos os caminhos eram a morte... Ela poderia... Ela poderia...

Seus pequeninos pés faziam um baque surdo enquanto tocavam o asfalto com toda força e velocidade que ela podia. O coração pulsava tão alto que poderiam ouvir mesmo muito longe dali, ela acreditava. Quanto mais andava, maior o sonho ficava e menor a dor parecia. Corria como nunca correra antes. Não sabia para onde, só sabia que deveria  ser para longe. Fechou os olhos, sentindo a brisa. E um barulho. Buzina de carro. Uma flor fora esmagada no asfalto. Sentiu a dor tomá-la como um todo. Estava viva. Mas não por muito tempo. Sorriu, ao sentir a dor indo embora. Brilhava, como no sonho. Então, ela podia. Estava livre. 

Um comentário:

  1. UOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOU! Chocada! Amei, amei demais! Tem como te amar ou te admirar mais? Acho que não <3

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